04 outubro, 2023

Inquisição no Brasil: como o Tribunal do Santo Ofício perseguiu brasileiros por séculos.

Quase dois mil brasileiros foram julgados pelo tribunal formado por membros da Igreja Católica Apostólica Romana. Judeus ibéricos (Espanhóis e Portugueses) que eram obrigados a abandonar a própria religião foram condenados no Brasil:


    Quando se fala em Inquisição, é comum pensar em mulheres, apontadas como bruxas, amarradas a troncos enquanto são queimadas vivas em uma pequena vila do interior da Europa. Acontece que a Inquisição, em seu período mais mortal, funcionou principalmente em cidades – e algumas delas localizadas, inclusive, fora do continente europeu, em países como Índia e Brasil.

    Ao longo dos 285 anos da atuação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal e nos territórios que compunham o Império português, há estimativas de pelo menos 400 brasileiros condenados por práticas, à época, consideradas contrárias à fé católica, como “judaizar”, homossexualidade, bigamia, feitiçaria e “solicitação”. O número de denunciados, porém, é maior.

    A historiadora brasileira Profª Drª Anita Waingort Novinsky, Z'L (Falecida em 20 de julho de 2021, em São Paulo), em seu livro Inquisição: Rol de Culpados, enumera pelo menos 1.819 habitantes do Brasil denunciados ao Tribunal do Santo Ofício. A maioria destes eram cristãos-novos, nome dado aos judeus convertidos à força ao cristianismo católico por ordem da Coroa portuguesa em 1497.

    Por séculos, cristãos-novos e seus descendentes foram perseguidos pelas forças inquisidoras, que desconfiavam de que estes, na verdade, mantinham suas tradições judaicas no segredo do lar.

    Por sua distância de Portugal, por seu vazio demográfico e sua relativa ausência de normas restritas, os cristãos-novos viram na recém-descoberta Terra de Santa Cruz – nome inicialmente dado ao Brasil pelos portugueses - uma oportunidade de recomeçar. Aqui, eles se tornaram comerciantes, agricultores e se tornaram uma das principais bases de construção da colônia.

    O Santo Ofício, porém, não se restringiu à Europa. Com seus familiares, agentes, visitadores e sedes além-mar, a Inquisição atuou na Colômbia, no Peru, no México, no Brasil e até mesmo na Índia. Aqui, portanto, os cristãos-novos que se instalaram encontraram uma Inquisição ativa e vigilante.

Do outro lado do Atlântico - o começo de tudo:

    Em 1497, o rei Manuel I de Portugal decretou a conversão forçada dos judeus ao cristianismo católico. Este batismo compulsório também criou uma distinção legal: cristãos-velhos, aqueles que já eram católicos à época, e os cristãos-novos, os recém-convertidos.

    Apesar da conversão obrigatória, os cristãos-novos, até pouco tempo judeus, continuavam a ser alvos de acusações, discriminações, processos e ataques no reino católico ultraconservador de Portugal (influenciados pela coroa Espanhola).

    A situação piorou em 1536, quando o rei João III conseguiu, junto ao papa Paulo III, a instalação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Teve início ali o funcionamento de uma verdadeira máquina judicial, apoiada pelo Estado e pela Igreja, com poder de investigar, denunciar, torturar, punir, exilar e até condenar à morte.

    Inicialmente, a ideia da Inquisição em Portugal era punir os cristãos-novos (judeus convertidos) que mantinham as práticas judaicas em casa. Mas, com o passar dos anos, sua atuação se estendeu para outros “pecados”, como feitiçaria, bigamia, homossexualidade e solicitações.

As diferentes Inquisições católicas da história:

    Os tribunais do Santo Ofício podem ser divididos em dois momentos históricos: a primeira versão, no período medieval, entre os séculos XIII e XIV, com atuação mais concentrada na França, Alemanha e Itália, e a segunda versão, a Inquisição moderna, promovida por Portugal e Espanha a partir do século XV indo até o século XIX.

    A atuação e o cenário político das duas Inquisições foi diferente. A primeira, financiada e conduzida pela Igreja Católica, tinha penas “mais brandas”, embora também usasse a tortura para arrancar confissões. O pano de fundo de sua motivação era o surgimento de seitas heréticas, que davam interpretações diferentes das oficiais à Bíblia Católica.

    A segunda Inquisição, promovida pelos espanhóis e pelos portugueses, possuía penas mais severas, como a morte na fogueira e o confisco de bens. Esta também se diferencia da anterior por ser financiada e até, em parte, conduzida pelo Estado, que atuava junto à Igreja Católica e chegava a escolher os inquisidores.

    Foi justamente desta segunda máquina de perseguição que os cristãos-novos e judeus precisaram fugir entre os séculos XVI e XIX. “Era uma estrutura com todo apoio do Estado e da Igreja. Então como você vai se opor a dois sistemas desses altamente complexos, estruturados?”, pondera o historiador Nilton Almeida, que estuda a presença dos cristãos-novos no Ceará.

    A resposta para esta pergunta muitos pensaram estar na distância. Na época, uma viagem de barco de Lisboa, capital do Império português, até a chamada Terra de Santa Cruz - mais tarde, Brasil - durava mais de um mês. O território brasileiro era praticamente desconhecido dos portugueses e, naturalmente, dos inquisidores.

    Em 1534, dois anos antes da criação da Inquisição em Portugal, a Coroa portuguesa havia definido a divisão do território brasileiro em 15 grandes faixas de terra, chamadas capitanias hereditárias. A primeira expedição portuguesa com objetivo de povoar o Brasil só ocorreu em 1532, portanto, a ocupação das capitanias pelos colonizadores era praticamente nula.

    Este cenário foi considerado uma oportunidade para os cristãos-novos, que, nas décadas seguintes, cruzaram o mar para buscar um recomeço em uma sociedade que estava começando.

    Um dos casos mais chamativos é o de Branca Dias. Nascida em Portugal, filha de pais judeus convertidos à força ao cristianismo católico, a cristã-nova Branca Dias veio para o Brasil após ser denunciada em Portugal por “judaizar”.

    No Brasil, Branca e seu marido, Diogo Fernandes Santiago, obtiveram sucesso no ramo da cana-de-açúcar, com engenhos entre a Paraíba e Pernambuco. Branca formou uma família numerosa no Brasil e é considerada uma das primeiras professoras do Brasil - ela construiu uma escola só para meninas e ministrava aulas de alfabetização (entre outras coisas).

    A matriarca também teria mantido uma “esnoga” (termo sefaradita) de como as sinagogas (termo grego) eram chamadas popularmente pelos judeus ibéricos – clandestina em suas terras. Pouco tempo após sua morte, o Brasil recebeu a primeira visita da Inquisição e a perseguição voltou a cair sobre sua família. 

    Várias de suas filhas foram acusadas de “judaizar” condenadas a penas como prisão, multa e penitências espirituais. Após esta última devassa, os membros da família de Branca se separaram e dividiram-se pelo Brasil.

As visitações dos inquisidores e a estrutura da Inquisição no Brasil:

    A atuação do Tribunal do Santo Ofício no Brasil começou tão logo a instituição pôde organizar uma estrutura que alcançasse o país. Já a partir de 1550, dom Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil, tinha poderes inquisitoriais.

    Na prática, porém, a Inquisição só passa a ganhar força aqui a partir da última década do século XVI. Em 1591, o Brasil recebeu a primeira “visitação” de um agente oficial do Tribunal do Santo Ofício, Heitor Furtado de Mendonça.

    Nestas visitas, os agentes licenciados analisavam os "pecados", promoviam celebrações, aceleravam casos e compilavam as denúncias. Eram representantes diretos do tribunal, que gozavam de todo o poder e prestígio da Inquisição. Ao todo, o Brasil teve quatro visitações oficiais (1591-1595, 1618-1620, 1627-28, 1763-1769). No entanto, nos períodos sem visitas, a Inquisição continuava ativa.

    Isso significou que o Brasil, para onde muitos cristãos-novos vinham para se distanciar da vigilância em Portugal, já não estava mais livre dos inquisidores. O Brasil, porém, nunca teve um tribunal inquisitorial em seu território, diferente, por exemplo, de Goa, domínio português na Índia que foi sede de um dos quatro tribunais do Santo Ofício montados por Portugal.

    No território brasileiro, a maior parte da atuação da Inquisição dependia dos agentes associados, membros do clero vinculados ao tribunal (sem integrá-lo), e dos chamados “familiares”, nome dado a civis que colaboravam com a Inquisição, isto é, agiam como espiões e denunciantes.

    Por conta de sua atuação, os familiares recebiam privilégios como isenção de impostos e alcançavam cargos importantes na administração colonial. Um dos casos mais famosos foi do militar português Antônio Borges da Fonseca, radicado em Pernambuco.

    Por mais de uma vez, Borges da Fonseca foi à Paraíba para prender cristãos-novos por “práticas judaizantes”. Sua atuação junto ao Santo Ofício rendeu boas graças em Lisboa. Ele chegou a governar a Paraíba entre 1745 e 1753 e seu filho, Antônio José Victoriano Borges da Fonseca, foi governador do Ceará entre 1765 e 1781.

    Para ser um familiar era necessário comprovar a fé católica e não ter “sangue infecto” (herança genética judaica), isto é, não ter ascendência judaica, muçulmana, indígena ou de pessoas negras, segundo definição do Santo Ofício. A atuação de familiares como Borges da Fonseca formou as bases do funcionamento da Inquisição no Brasil.

    Como não havia tribunais aqui, os casos, após serem analisados pelos agentes locais, eram remetidos ao Tribunal de Lisboa, onde a denúncia era formalizada e o caso, julgado. Os detidos, então, eram levados a Portugal para receber suas penas. Muitos nunca voltaram. Foi o caso de Ana Rodrigues.

    Ana Rodrigues é considerada a primeira moradora do Brasil a ser condenada à fogueira pela Inquisição. Ela foi denunciada por realizar práticas judaicas no engenho Matoim, no recôncavo baiano.

    Após a denúncia, ela foi levada a Portugal em 1593, já com 80 anos de idade, e ficou presa à espera do julgamento. Morreu na cela, antes de conhecer sua pena de condenação à fogueira.

As vítimas e as punições da Inquisição católica portuguesa:

    Aqueles considerados culpados pela Inquisição portuguesa podiam ser condenados a uma variedade de penas. Algumas eram mais brandas, como prisão. Havia também aqueles condenados a usar para sempre o hábito penitencial (o sambenito), uma espécie túnica que os marcava como culpados.

    Outras penas eram mais severas, como confisco de bens e exílio. De Portugal, muitos eram exilados para o Brasil ou Angola, no continente africano. O exílio, inclusive, teve papel importante na instalação de cristãos-novos aqui, uma vez que muitos condenados em Portugal ao exílio no Brasil resolveram ficar aqui.

    Por fim, havia aqueles condenados à morte por degolamento, enforcamento, estiramento e cremação, isto é, ser queimado vivo na fogueira. Boa tarde destas punições mortais ocorria em lugares públicos e movimentados de Lisboa, como o Terreiro do Paço (atual Praça do Comércio) ou na Praça do Rossio, em frente ao Palácio de Estaus, sede da Inquisição.

    Os processos inquisitoriais eram uma mistura de processo penal e condenação antecipada. Havia, como nos processos penais, acusação, testemunhos, juiz. As vítimas, contudo, não tinham direito de saber quem os havia denunciado. A prática de tortura era comum – e o torturado era obrigado a assinar documentos em que se comprometia a não revelar a tortura.

    Nos mais de 40 mil documentos acerca do Tribunal do Santo Ofício, guardados na Torre do Tombo, em Lisboa/Portugal, é possível encontrar detalhes que lançam luz sobre os processos investigativos da Inquisição.

    Conforme os documentos, entre as principais “provas” de que o cristão-novo estava “judaizando” estavam hábitos que, hoje, estão incorporados ao cotidiano brasileiro. Uma das descrições mais comuns nas denúncias era de que o denunciado costumava varrer a casa da frente para trás - da porta para o quintal -, um hábito de origem judaica.

    Outro “indício de judaísmo”, de acordo com os documentos, era o hábito de preparar a carne com bastante cebola e azeite – e não com banha de porco, como era costume à época, uma vez que judeus não comem porco. Descansar no sábado (shabat) também podia ser um problema para um cristão-novo, já que o sábado é o dia sagrado do judaísmo.

    A partir de relatos que denunciavam tais práticas, com denúncias que vinham de fontes anônimas, um sem-fim de cristãos-novos foi processado e punido pela Inquisição de Portugal. Conforme a historiadora brasileira Anita Novinsky, pelo menos 1.819 cristãos-novos do Brasil foram denunciados ao Tribunal do Santo Ofício, sendo 1.089 homens e 721 mulheres.

    No entanto, com o avanço das décadas, os inquisidores passaram a atuar em duas frentes: os crimes contra a fé e os crimes contra a moral. Além de perseguir aqueles acusados de “judaizar”, os agentes passaram a perseguir homossexuais, bígamos, hereges e adúlteros.

    As denúncias, muitas vezes, vinham de dentro de casa. Em 1661, o barbeiro Salvador Rodrigues foi acusado de “sodomia” pelos próprios irmãos na cidade de Belém, na então capitania do Grão-Pará. A investigação do Santo Ofício encontrou uma rede maior de contatos do barbeiro e acabou por punir outras pessoas na cidade.

    Por todo o Brasil, a Inquisição atuou mais fortemente em locais como Pernambuco, Paraíba, Bahia, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Pará. O movimento inquisitório, portanto, seguia tanto o movimento econômico quanto o movimento populacional.

    Quando a cana-de-açúcar do Nordeste era o principal produto de exportação do Brasil, as forças inquisitórias atuaram mais fortemente no Nordeste. Quando metais preciosos foram descobertos em Minas Gerais, os olhos da Inquisição se voltaram para os mineiros.

    O Rio de Janeiro, que passou a experimentar forte crescimento populacional e teve uma das maiores comunidades de cristãos-novos da colônia, foi devassado pelo Tribunal do Santo Ofício. 

    Importante para os planos da Coroa portuguesa de expandir o Império pela região amazônica, o Pará foi, inclusive, o destino da última visitação de um emissário da Inquisição no Brasil, entre 1763 e 1769.

    Os números exatos de brasileiros denunciados ou condenados pela Inquisição não estão definidos. Há, nos registros da Torre do Tombo, um grande número de casos de cristãos-velhos acusados no Brasil, por exemplo, de heresia. Os arquivos, contudo, não foram completamente estudados, o que não permite fixar um número.

    Entre os pesquisadores também não há um consenso da quantidade total de denunciados e condenados no Brasil pelo Santo Ofício, somados cristãos-velhos e cristãos-novos. Uma coisa, porém, é certa: o número está na casa dos milhares.

Cristãos-novos e a colonização do Nordeste brasileiro:

    Quando a portuguesa Maria Tomásia Barbosa acompanhou o marido, o capitão-mor Pero Coelho, em expedição para a Serra da Ibiapaba, o Ceará era pouco mais que uma faixa terrestre pouco habitada, considerada de difícil acesso e sem atrativos.

    Coelho pretendia abrir caminho pelo território cearense, subjugar os povos indígenas da região e estabelecer uma estrada para o Maranhão, a partir do qual o Reino poderia se expandir para a região amazônica.

    A expedição do marido de Maria Tomásia, em 1605, foi um fracasso. O caminho que tomaram, pelo litoral cearense, quente e arenoso, castigou os homens. A batalha contra os povos indígenas, perderam. No caminho de volta, o filho mais velho do casal morreu. Quando, enfim, deixaram o Ceará derrotados, Pero Coelho voltou a Portugal, Maria Tomásia permaneceu na Paraíba.

    Tomásia era filha de um cristão-velho e uma cristã-nova. Sua família, descendente de judeus convertidos à força, fez do Brasil sua morada. Sua irmã, por exemplo, era casada com um capitão-mor - cargo de chefia militar da era colonial - da Paraíba.

    A trajetória de Maria Tomásia é semelhante à de milhares de cristãos-novos que vieram ao Nordeste e aqui participaram do processo de colonização. Fernando de Noronha, por exemplo, que dá o nome à ilha turística (que atualmente é administrada por Pernambuco), era cristão-novo.

    No início, os cristãos-novos integraram a indústria de exportação do pau-brasil. Mais tarde, muitos atuaram no ramo da cana-de-açúcar, que veio a se tornar o principal produto brasileiro de exportação, e foram proprietários de muitos engenhos nas capitanias da Paraíba, de Itamaracá, da Bahia e de Pernambuco.

    Nem todos eram abastados, muitos atuaram como agricultores e simples comerciantes. No entanto, conforme destaca o historiador Nilton Almeida, este grupo possuía uma vantagem na pouco organizada sociedade do Brasil colonial: sabiam ler e escrever.

    “Eles sabiam ler e escrever pois já liam o livro sagrado (Bíblia hebraica). O judaísmo tem essa particularidade de fazer com que as pessoas se alfabetizem para ler os textos sagrados”, explica o professor. “A Inquisição, vendo o tamanho do Brasil e que essas comunidades [judias e cristãos-novos] estavam tendo determinada importância, começa a perseguir”, aponta o historiador.

    Diante das visitações, da vigilância dos “familiares” e das constantes rondas do Bispado de Pernambuco, muitos cristãos-novos procuraram abrigo em uma região vizinha, porém relativamente vazia, onde poderiam, novamente, tentar recomeçar suas vidas: o Ceará.

Ceará: terra de oportunidades e anonimato:

    Até o século XVIII, o Ceará era pouco relevante, uma capitania periférica. Na verdade, até 1799, o Ceará foi vinculado a Pernambuco, e inclusive pagava impostos ao governo pernambucano. O próprio capitão-mor do Ceará era nomeado por Pernambuco. E, claro, a sede do poder inquisitório da região estava na cidade pernambucana de Olinda.

    O cenário encontrado no Ceará por Maria Tomásia só começou a se alterar a partir da segunda metade do século XVIII, com a concessão das sesmarias e a implantação das fazendas de gado para a florescente indústria da carne, que tinha como principais destinos o Maranhão e Pernambuco.

    Por isso, cristãos-novos e seus descendentes se dirigiram para o Ceará como terra de refúgio, pelo anonimato, e de oportunidades, pelas possibilidades. No estado, os cristãos-novos participaram da construção dos primeiros grandes centros habitacionais do estado, como Aracati e Sobral, e deixaram suas marcas na história do estado.

    “O que vamos encontrar aqui no Ceará: muitos descendentes de cristãos-novos, gente de segunda, terceira geração que veio para Ceará”, aponta Nilton Almeida. É o caso de Josefa Maria dos Reis. Os pais de Josefa, cristãos-novos nascidos no Brasil, foram condenados à prisão, em 1731, por “judaizar” na Paraíba. Três irmãos de Josefa receberam a mesma pena no ano seguinte.

    Josefa, ainda criança, conseguiu ajuda e deixou a Paraíba para se estabelecer na Vila de Aquiraz, no Ceará. Josefa casou com o sergipano António de Freitas Coutinho, que chegou ao posto de alcaide, um cargo administrativo relevante no Brasil colonial. Após ficar viúva, Josefa casou novamente.

    Ela viveu a maior parte da vida na pequena Vila da Fortaleza de Nossa Senhora de Assunção, que daria origem, mais tarde, à cidade de Fortaleza, atual capital do Ceará. Foi enterrada, inclusive, na então igreja matriz da vila.

    Conforme escreve Nilton Almeida em sua tese “Cristãos-novos e seus descendentes no Ceará Grande: a Inquisição nos sertões de fora”, apresentada na Universidade de Nova Lisboa, em Portugal, “o exemplo de Josefa evidencia que esse lugar ermo no Nordeste do Brasil colonial [Ceará] constitui terra ideal, onde os ‘impuros’ de sangue, em geral, podiam se misturar à gente comum e levar a vida dentro de relativa segurança”.

A Inquisição no Ceará:

    Apesar do cenário favorável, a capitania do Siará Grande - como era chamada - não estava livre por completo dos inquisidores. Conforme o pesquisador baiano Luiz Mott, foram encontrados pelo menos 7 casos de moradores do Ceará que foram denunciados à Inquisição. Um deles, inclusive, chegou a ser preso e condenado ao exílio.

    Das sete denúncias encontradas contra habitantes do Ceará, três foram por homossexualidade, ou “sodomia”, como o Tribunal do Santo Ofício se referia à época. Outras duas denúncias foram de solicitação por parte de sacerdotes. Uma das denúncias foi de sacrilégio contra um homem escravizado e duas denúncias foram de bigamia, isto é, de um indivíduo casado com duas pessoas.

    Foi justamente um destes casos de bigamia o que recebeu a punição mais severa no território cearense. O caso ocorreu com o português José Luís Pestana, que vivia no Brasil desde jovem.

    Primeiro, ele casou em Pernambuco, onde estudava. Lá, foi à falência. Depois, fugiu para o Ceará. Aqui, casou novamente, obteve posses e chegou a ser juiz ordinário nas proximidades de Sobral.

    No Ceará, José Luís Pestana adotou o nome de Polinardo Caetano Cesar de Ataíde. Após nove anos de casamento, a farsa foi descoberta. Ele foi preso em 1778, levado a Lisboa, ficou dois anos em prisão e em 1780 foi condenado a seis anos de degredo em Angola. Nunca mais se ouviu falar em Polinardo.

    Agentes locais da Inquisição vinham de Olinda para “punir” pecados mais leves no Ceará, infrações das quais sequer era preciso guardar registro, e remetiam ao Santo Ofício os mais pesados, que justificavam os custos do processo, como os registros, o transporte a Lisboa, a acusação em tribunal.

    Nas últimas décadas do século XVIII, a Inquisição já não possuía a força e os favores que a tornaram implacável nos séculos anteriores. Em 1753, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, convenceu o rei de Portugal a encerrar a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos. A partir dali, seriam todos cristãos, independente de quando.

    Tanto no Brasil quanto em outras partes do Império português, as atividades inquisitoriais arrefeceram lentamente. Em 1812, o Tribunal do Santo Ofício em Goa, na Índia, foi extinto. Em 1821, os deputados eleitos para as Cortes Gerais após a Revolução Liberal do Porto – que exigiu que a família real deixasse o Brasil e voltasse a Portugal - votaram pelo fim da Inquisição, encerrada após 285 anos.

    O último inquisidor-geral do Santo Ofício de Portugal, inclusive, foi um nordestino, o bispo pernambucano Azeredo Coutinho, fundador do Seminário de Olinda. Em 1802, ele deixou o Brasil para o assumir Bispado de Elvas, em Portugal, e foi nomeado inquisidor-geral do reino, cargo que exerceu até o Tribunal ser encerrado.

Descendentes retomam raízes judaicas no Ceará:

O sobralense Ireland Oliveira descobriu ser descendente de Branca Dias, uma das matriarcas mais importantes da era colonial.


    Após a devassa sofrida no fim do século XVI e o início do século XVII, os descendentes de Branca Dias espalharam-se por outras regiões do Brasil. Alguns vieram ao Ceará e fizeram morada na região do rio Acaraú, no norte do Ceará, onde viria a se formar a cidade de Sobral.

    Entre os descendentes de Branca Dias, uma das mais importantes matriarcas do período colonial, estão nomes figuras como o político Ciro Gomes e o empresário Cândido Pinheiro Koren de Lima, fundador da rede hospitalar Hapvida (que alias, a Sra. Mônica Faldini Pinheiro Koren de Lima cita no mini documentário sobre branca dias lançado pela cantora sefaradita Fortuna o seguinte: "Ceará em hebraico significa tempestade. quando olhamos para uma explicação na Kabbalah, significa “ventos uivantes”, “ventos tempestuosos”. e os kabbalistas dizem que aqui é o lugar onde aconteceram os ventos uivantes da época da inquisição. das almas uivantes, que buscam se encontrar de algo que foi abruptamente cortado das pessoas que chegaram ao Brasil").

    A extensão de sua descendência, porém, é ainda mais ampla. Foi o que descobriu o auditor fiscal Ireland Oliveira. Criado em família católica na cidade de Sobral, Ireland ouviu dos mais velhos, na infância, que tinha “sangue judeu”. O episódio deixou marcas na memória - e uma dúvida que só seria respondida décadas mais tarde.

    Já adulto, professor da Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), Ireland buscou a genealogia da família. “Comecei a fazer perguntas a mim mesmo, perguntas no aspecto de: quem eu sou? Eu comecei a levantar aspecto genealógico, documentos de família, certidões de nascimento, de casamento, documentos de igreja, porque antes não existia cartório, comecei a levantar estas informações”, explica o professor.

    Após muita investigação, chegou a informação: Ireland é descendente da famosa matriarca Branca Dias. Com as descobertas sobre seu passado familiar, o auditor fiscal começou a frequentar como observador, em 2005, a SIC - Sociedade Israelita Cearense, onde se aproximou da cultura judaica e dos ensinamentos da Lei de Moisés.

    Em 2012, após um processo supervisionado por um rabino de Minas Gerais, Ireland converteu-se ao judaísmo. Para Ireland, o retorno à fé de Branca Dias é um “ato de resgate da fé e da história judaica”.

    A família, embora tenha acompanhado a descoberta e a conversão de Ireland, não seguiu seus passos. Apenas o filho mais novo, assim como o pai, optou por converter-se ao judaísmo. Hoje, Ireland e o filho frequentam juntos a Sociedade Israelita Cearense, agora como judeus.

    "É como se você abrisse as portas para uma imensa biblioteca, e que um determinado texto, uma determinada afirmação, um determinado costume lhe abrisse as portas para diversas reflexões”, avalia Ireland sobre o retorno à religião de seus antepassados. “Para mim, é motivo de muita satisfação, de crescimento espiritual”.

-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

CRÉDITOS

Autor: Leonardo Igor, g1-CE

Adaptação: Macabeo Gomez Amarias - מכבה גומר אמריה           

Fonte: https://g1.globo.com/ce/ceara/noticia/2023/07/06/inquisicao-no-brasil-como-o-tribunal-do-santo-oficio-perseguiu-brasileiros-por-seculos.ghtml  

Imagens: 

CENTRO CULTURAL SERIDIM 🌵 Do Seridó à Sefarad! - CCS © 2015 - 2023

Contato: centro.cultural.seridim@gmail.com



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Inquisição no Brasil: como o Tribunal do Santo Ofício perseguiu brasileiros por séculos.

Quase dois mil brasileiros foram julgados pelo tribunal formado por membros da Igreja Católica Apostólica Romana. Judeus ibéricos (Espanhóis...